Na varanda - Mandioca do século XV até os dias de hoje
Você já parou para pensar na influência dos povos originários da América e da África na construção da cultura alimentar brasileira, incluindo ainda as diferenças regionais? Em decorrência do processo de colonização europeia, o Brasil e outros países da América Latina, tiveram sua história marcada pela escravização e exploração da terra, resultando, por muitos anos, na negação dos direitos básicos e dos modos de ser e saber desses povos.
A matéria “Decolonizando a alimentação”, presente na Revista Sustentarea (volume 5, número 4), publicada em 2021, ressalta os impactos desse período sob o sistema alimentar brasileiro, uma vez que, mesmo após os processos de independência e de abolição da escravatura, a produção de alimentos e as práticas culinárias eram regidas, majoritariamente, pelo domínio econômico e sociocultural europeu. Posteriormente, esse posto foi preenchido pela hegemonia ocidental dos Estados Unidos, que junto à difusão da Revolução Verde na década de 1970, culminaram no Brasil como um dos maiores agroexportadores do mundo por meio da produção de commodities, como soja e milho.
Em meio a essa trajetória, as práticas de cultivo, os hábitos alimentares e as técnicas culinárias dos povos originários foram historicamente desvalorizados. Nesse sentido, alimentos como a mandioca e seus subprodutos, tal como a farinha de mandioca, foram perdendo espaço para outros ingredientes e preparações. Contudo, como um registro da resistência desse povos, é possível observar no nosso cotidiano, a presença de receitas indígenas e afro-brasileiras, por exemplo, o beiju, tutu, pirão, paçoca e o tacacá; além das técnicas de produção e beneficiamento, que foram transmitidas ao longo das gerações, e representam as vivências de uma ancestralidade indígena e africana na formação do país.
Sob a escrivaninha - Consumo de farinha de mandioca no Brasil
Você tem ou tinha o hábito de consumir farinha de mandioca diariamente? De acordo com nossas análises de dados da Pesquisa Nacional de Orçamentos Familiares (POF/IBGE) em 2008-2009 e 2017-2018, brasileiros do menor quartil de renda são aqueles que consomem mais farinha de mandioca, ainda que este consumo venha diminuindo ao longo dos anos. Em 2009, o consumo médio diário de farinha de mandioca foi de 14,7 g na população de baixo rendimento e 1,8 g na classe de alta renda. Já em 2018, houve um aumento do consumo entre aqueles pertencentes às classes de rendas mais altas, chegando a 4,2 g, e uma redução de 10% entre os da classe de baixa renda (13,2 g).
Além disso, observou-se uma diferença considerável da presença de farinha de mandioca nas mesas de brasileiros de áreas rurais e urbanas. Em ambos os períodos, a farinha de mandioca esteve presente diariamente na dieta de praticamente 1 a cada 4 habitantes de áreas rurais, enquanto a prevalência de consumo em áreas urbanas foi de em torno de 8%.
Tendo em vista as diferenças regionais, os brasileiros da Região Norte são aqueles que consomem farinha de mandioca diariamente com maior frequência, com uma prevalência superior a 40%. Em seguida, de acordo com a frequência de consumo, estão as regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, respectivamente.
De modo geral, o consumo de farinha de mandioca apresentou indícios de diminuição nesta década, sendo o consumo maior entre a população de baixa renda, com destaque para aqueles que moram na região Norte, e em áreas rurais.
No fogão - Chibé: o favorito dos paraenses
Como visto na seção anterior, o consumo de farinha de mandioca na região Norte é bastante expressivo, por isso, trouxemos uma receita popular dessa região. Conheça o Chibé, do tupi Xibé, um mingau feito a partir da mistura de farinha d’ água e água. De origem indígena, é bastante consumido no estado do Pará, principalmente nas áreas rurais. Algumas variações levam suco de limão, pimenta, cebolinha e coentro, podendo ser consumido sozinho, com peixe ou camarão.
De acordo com o “Glossário de Termos e Expressões Paraenses e Marajoaras”, Papá-chibé é aquele que se alimenta de chibé, além de ser o apelido dado aos naturais dos estados do Amazonas e do Pará. A expressão Papá-chibé, utilizada atualmente como forma de identificação cultural da população paraense - “o autêntico paraense” -, já foi vista como pejorativa e estigmatizadora por sua associação à pobreza.
Em seu perfil do Instagram, a influencer indígena Maira Gomez, conhecida como Cunha Poranga, da etnia Tatúyo, do estado do Amazonas, compartilhou um vídeo falando sobre o Chibé.
Portarretrato - Mandioca e seus derivados como parte do nosso dia-a-dia
Você já pensou em quantas preparações à base de mandioca ou seus derivados podem ser incluídas na sua alimentação diária? Você toparia comemorar o seu próximo aniversário com um bolo de puba? Já pensou em começar o seu dia com um café da manhã com mandioca cozida? Você já se perguntou por que determinados alimentos são escolhidos em detrimento de outros?
Ao longo desta edição da Cartinha da Rainha, apresentamos alguns fatores que impactam o consumo alimentar, como questões históricas, expansão do agronegócio, forte influência culinária de determinados países e presença da indústria de alimentos. Sabe-se que as escolhas alimentares também são influenciadas por questões psicológicas, econômicas, religiosas, sociais, biológicas, demográficas e, portanto, não se trata apenas de escolher entre um ou outro alimento somente pelo seu sabor, por exemplo. Cada escolha é permeada por uma teia complexa, formada por determinantes relacionados direta e indiretamente às pessoas e a sua alimentação.
Visando contribuir para o processo de escolha alimentar, deixamos a sugestão de explorar o repertório de alimentos oferecidos nas feiras. Desafie-se a escolher um alimento para experimentar pela primeira vez ou a preparar de modo diferente algum alimento que já faz parte do seu cardápio. Experimente perguntar aos feirantes quais preparações eles recomendam para aquele alimento. Certamente, você se surpreenderá com as possibilidades de novos sabores e sensações.
A mandioca pode ser o ponto de partida, pois trata-se de um alimento tradicional brasileiro muito versátil, que possibilita uma variedade de preparações, seja com a raiz in natura ou com seus derivados. Que tal um nhoque de mandioca ou uma farofa de pinhão com farinha de mandioca para aquele almoço ou jantar gostoso? Para sobremesas, um pudim de tapioca com coco ou um bombocado de mandioca. Essas e outras receitas você encontra no site do Sustentarea. Te convidamos para a partir delas se inspirar e colocar mais mandioca nos seus preparos culinários do dia a dia.
Acompanhe as outras produções do Sustentarea!
Você sabia que o Sustentarea tem um podcast ? “O Comida que Sustenta” está disponível no Spotify e na plataforma Orelo. Venha conferir o segundo episódio da terceira temporada!
“Neste programa, você irá mergulhar nos sistemas alimentares tradicionais brasileiros , que envolvem a forma como os povos originários se relacionam com os alimentos, desde as sementes, passando pelo cultivo, colheita, distribuição, preparo, formas de ingerir até o desfrutar deles.”
Referências
CRUZ, Roberto Borges da. Farinha de "pau" e de "guerra": os usos da farinha de mandioca no extremo norte (1722-1759). 2011. 146 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Pará, Belém, 2011. Disponível em: https://repositorio.ufpa.br/jspui/bitstream/2011/4579/1/Dissertacao_FarinhaPauGuerra.pdf. Acesso em: 12 jul. 2023.
GONÇALVES, Letícia et al. Decolonizando a alimentação. Revista Sustentarea, [s. l], v. 5, n. 4, p. 11-15, nov. 2021. Trimestral. Disponível em: https://www.fsp.usp.br/sustentarea/revista-sustentarea/. Acesso em: 08 jul. 2023.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares 2008-2009: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
LADISLAU, Claudiane da Silva et al (org.). Glossário de termos e expressões paraenses e marajoaras. Pará: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, 2021.
PICANÇO, Miguel et al. O chibé como marcador das identidades caboclas da Amazônia paraense: os atravessamentos nas experiências gastronômicas do toró gastronomia sustentável. 2022. Disponível em: https://portalamazonia.com/cultura-alimentar/o-chibe-como-marcador-das-identidades-caboclas-da-amazonia-paraense. Acesso em: 11 jul. 2023.
Esse conteúdo foi organizado e editado por integrantes do GT Alimentação Brasileira - Mandioca: Alice Medeiros, Evelym Landim, Evla Vieira, Fernanda Nascimento Pereira, Gerson Nogueira, Jennifer Tanaka, Letícia Gonçalves, Suany Silva e Thais Arcari.
Quanta informação bacaba e importante! Esta muito rica essa cartinha!