Farinhas de Feira [#11]
Na varanda
A primeira imagem que vem à mente de muita gente quando se fala em feiras é um aglomerado de pessoas, uma grande diversidade de produtos, muito barulho e um cheiro muito bom de comida fresquinha. As feiras são espaços historicamente construídos por pequenas e pequenos produtores, para que pudessem escoar sua produção, trocar produtos e fazer parceiros. Souza (2021) nos mostra um olhar mais aprofundado sobre esses espaços:
“As feiras são ambientes que deságuam relações, processos e uma trama de ações comunitárias que são estabelecidas desde o preparo das sementes até o transporte desses alimentos até o local de sua realização.”
Nas feiras Brasil adentro, facilmente encontramos diversos tipos de farinhas de mandioca produzidas. Seja para consumir em casa ou acompanhar as comidas servidas nas feiras, ela é um item amplamente querido e difundido em todas as regiões.
Mas como será que é a relação dos produtores e vendedores de farinha com as feiras? Vamos saber um pouquinho mais ali na escrivaninha.
Escrivaninha
De acordo com os dados disponíveis no MapaSAN (2018), mais de 90% dos municípios possuem pelo menos uma feiras em seu território. O mapeamento que contou com 1.416 municípios identificou 3.155 Feiras Livres, a maioria delas (94%) com periodicidade semanal, e mais de 770 mercados públicos ou populares.
Agora vamos nos debruçar sobre dois trabalhos que trazem a perspectiva dos próprios feirantes sobre o espaço em que ganham a vida. O trabalho de Souza (2021) aborda o espaço político e popular das feiras nacionais, representado pela articulação do movimento dos trabalhadores Sem Terra que trouxeram um pedacinho de cada Brasil à cidade mais cosmopolita do país. Veja o trabalho completo aqui.
Trouxemos também o trabalho de Lobato e Ravena-Cañete (2015) que ilustra muito bem a lida diária dos feirantes com as farinhas, os conhecimentos sobre as outras etapas da cadeia de mandioca e suas memórias, vínculos afetivos e histórias com esse produto que nos dá tanta sustância. Veja o trabalho completo aqui.
No Fogão: O Protagonismo das Farinhas nas Feira
A farinha é um importante alimento na mesa dos brasileiros, inclusive presente em muitas localidades como o principal ingrediente do prato, é também protagonista nas feiras devido, especialmente, pelo contato direto entre o consumidor e o vendedor. Cada feirante possui sua forma particular para chamar atenção e atrair clientes. Como diz Lobato e Ravena-Cañete (2015, p. 260), no relato de Dona Isabel: “Olha a farinha, olha a farinha. Essa é de Bragança! Pode provar meu amor, pode provar”.
O encantamento por parte do consumidor, além de ocorrer por meio da desenvoltura do feirante, também se inicia pelos olhos, dada tamanha variedade de farinhas, marcado por uma riqueza de cores e espessuras. Nas feiras, outros sentidos são aguçados quando você pode ter o contato direto com quem está comercializando, sabe de onde o alimento vem, como foi produzido e, além disso, você pode pedir para experimentar, degustar, tocar, sentir.
Um punhado de farinha é retirado de cada saca que o cliente tem interesse. Gostou? Está torradinha? Quer experimentar mais alguma? Assim inicia uma troca de relações entre cliente e feirante. Nesse vai e vem de degustação, uma conversa aqui e ali sobre aquela farinha, são criados os laços de proximidade. A comercialização, nesse caso, ganha uma importância secundária na transação e abre caminho, inclusive, para a fidelização do cliente. Você já ouviu ou falou? “Eu só compro com a Dona Maria” ou, então, “na barraca do Seu João, a farinha é mais torrada”. O que ocorre é que a farinha é a porta de entrada para a criação de afetividade, aflorando vínculos e conexões. Dessa forma, abordar essas questões nos remete a compreender como o alimento apresenta várias camadas de significados e importâncias, além da concepção do alimento enquanto mercadoria.
Assim, no caso das feiras, apesar de por vezes reforçar o caráter de comércio informal, é nesses espaços onde ocorre maior pessoalidade nas trocas econômicas. Lacerda e Mendes (2017), falam das rugosidades dentro desse espaço que resiste e produz espaços diversos, dinâmicos, de experiência vivida, mesmo diante da insistência de um sistema alimentar hegemônico que aniquila relações. Por ser tão real, baseado no cotidiano dos feirantes que, diariamente, ao longo de muitos anos, têm uma relação com os alimentos que comercializam, como a farinha, é que surge o reconhecimento de que as relações não são exclusivamente econômicas.
Assim, as farinhas possuem histórias e elementos próprios dos sujeitos sociais que são reforçados no dia a dia a partir do compartilhamento das experiências, de quem produz, vende e consome.
Se você é um assíduo consumidor de farinha e já comprou esse alimento nas feiras e nos mercados convencionais, já deve ter notado as diferenças. Porque, afinal, todo mundo tem uma história com a farinha...com a farinha de feira! Para quem ainda não teve esse prazer, fica o convite para experimentar.
Portarretrato: Feira do Ver-o-Peso
O mercado do Ver-o-Peso, localizado na cidade de Belém do Pará, é considerado a maior feira ao ar livre da América Latina. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no antigo Porto do Pirí, a Casa de Haver o Peso, inaugurada em 1625, era, inicialmente, apenas um posto de controle de mercadorias e arrecadação de impostos. No século XIX, em 1897, foi autorizada a construção do Mercado do Ver-o-Peso (ou também Mercado de Ferro) e começou a ser construído durante o Ciclo da Borracha, em 1899.
Atualmente, o Complexo do Ver-o-peso é caracterizado como um patrimônio arquitetônico e paisagístico de 25 mil metros quadrados e é constituído por várias construções históricas, como a feira do Ver-o-Peso, o mercado de carne e o mercado de peixe. A feira é constituída por boxes de alimentação, frutas, verduras e as erveiras. O mercado é um dos principais pontos turísticos da cidade de Belém conhecido pela sua história, beleza arquitetônica e variedade de produtos locais. Portanto, o mercado é rico em cultura e gastronomia, incrivelmente vistoso de cores, sabores, cheiros e histórias.
Mas, como o mercado do Ver-o-Peso se relaciona com a farinha de mandioca? A farinha não pode faltar na mesa dos paraenses: ela está nos pratos do dia-a-dia, com peixes, carnes e, principalmente, com o açaí.
E no Ver-o-Peso isso não é diferente. A farinha que abastece esse mercado vem principalmente da agricultura familiar, assim como os seus subprodutos, tucupi, goma (tapioca) e a maniva (folha de mandioca). O levantamento feito por Leão et al. (2022) identificou 38 boxes, composto por 21 vendedores, que vendem farinha de 3 tipos, d’água, seca e tapioca, divididas por sua vez em 12 subtipos. Abaixo, destacamos no quadro, os resultados desse estudo.
Aqui dá para ver a variedade de farinhas presentes na feira do Ver-o-Peso. Enfim, podemos dizer que a farinha, além de ser a rainha do Brasil, também é uma grande protagonista na feira, por meio dela são expressadas sociabilidades, afetos, saberes e experiências.
REFERÊNCIAS
Esse conteúdo foi organizado e editado pelas integrantes do GT Alimentação Brasileira - Mandioca: Alice Medeiros, Evelym Landim, Evla Vieira, Gerson Nogueira, Jennifer Tanaka, Letícia Gonçalves, Suany Silva e Thais Arcari.