Farinha, Fé e Luta: a vida de Dona Nena, produtora de farinha de mandioca em Murici - AL [#29]
Na Varanda: Movimento de Mulheres Camponesas - nenhum sonho é tão pequeno para quem sabe dividi-lo.
“Indígena como milho, como o milho, a mestiza é um produto híbrido, desenhando para sobreviver nas mais variadas condições. Como uma espiga de milho – um órgão feminino produtor de semente – a mestiza é tenaz, firmemente amarrada às cascas de sua cultura. Agarra-se ao sabugo como os grãos; com caules grossos e raízes fortes, ela se prende à terra – ela sobreviverá a encruzilhada” (ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza / Rumo a uma nova consciência, 1987).
O Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) é uma organização que nasce da terra, da luta e da resistência cotidiana das mulheres do campo. Suas raízes remontam ao início dos anos 1980, quando movimentos locais de mulheres rurais começaram a se organizar. A data simbólica considerada como marco de fundação do MMC é 1º de maio de 1983. Nasce do chão da roça, das cozinhas comunitárias, das rodas de partilha e dos corpos que carregam a sabedoria ancestral do cultivo e do cuidado. Atualmente, o MMC atua em 16 a 18 estados de todas as regiões do país, abrangendo uma das maiores mobilizações de mulheres rurais, é o feminismo construído por mulheres do campo, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, agricultoras familiares, assentadas e tantas outras que vivem e transformam os territórios rurais todos os dias. Embora não exista um número exato, sabe-se que o MMC reúne milhares de mulheres. Mulheres essas que são diversas no Brasil e ainda mais na América Latina e Caribe. Um exemplo marcante foi o I Encontro Nacional em 2013, com cerca de 3.000 participantes vindas de 22 estados.
São as mulheres que decidem os rumos em direção a uma sociedade onde todos tenham o direito de viver com dignidade e igualdade. São elas que nos ensinam a nos indignar diante de injustiças, transformando a indignação em ação concreta. Isso se concretiza nas lutas, na organização, na formação e na implementação de experiências de resistência popular. É um movimento onde as mulheres são as protagonistas, portanto, feminista sendo necessariamente anti-patriarcal, anti-racista e anti-capitalista.

É preciso enfrentar o latifúndio, o racismo, a violência estrutural e o modelo de desenvolvimento que envenena as mentes, os corpos e os solos. A luta pela libertação das mulheres é tarefa de todas e todos, mas as principais responsáveis por essa conquista são as mulheres. Enquanto produzem alimentos saudáveis, essas mulheres também cultivam autonomia. Enquanto resgatam saberes, afirmam suas vozes e constroem um outro jeito de viver. Com suas sementes, faixas roxas, panelas e flores, semeiam rebeldia, afeto e transformação.
Durante os encontros e eventos organizados pelo movimento, acontecem momentos de reflexão muito importantes para a vivência dessas mulheres: as místicas. A terra, a água, o fogo e o ar são elementos que dão significados à mística da vida. Segundo a filosofia do movimento, a mística nos leva a crer que quando mulheres e homens se unirem na luta por justiça no Brasil haverá grandes mudanças sociais.
A função da mística é:
De valorização e libertação da mulher camponesa;
De defesa da classe trabalhadora;
Que leva o nosso movimento a apaixonar as mulheres pela causa da libertação, centrado no compromisso com a justiça, no compromisso com a vida dos pobres e no compromisso com a organização popular;
De luta contra exploração, contra violência, contra discriminação e dominação;
Que desperta em nós a necessidade de lutar por nossa dignidade e nossos direitos;
Que cria em nós a necessidade de organização e de autonomia;
Que combate o machismo e desperta para a necessidade de construção de novas relações de igualdade;
Que respeita nossa história de luta, nossa diversidade cultural, nossas experiências construídas e nossos símbolos regionais e nacionais;
De relação e de defesa da natureza, das sementes, da biodiversidade.
Fonte: https://mmcbrasil.org/home/quem-somos-e-nossa-missao/
Para conhecer mais o movimento acesse o site: https://mmcbrasil.org/
Instagram: @movimentodemulherescamponesas
Nesse contexto, nós realizamos uma entrevista com a dona Nena, produtora de farinha de mandioca em Alagoas, vinculada ao Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).
Sobre a Escrivaninha: Palavras que se enraízam - a vida e a luta de Dona Nena
Nesta edição, atravessamos virtualmente o interior de Alagoas, mais precisamente o munícipio Murici (AL), localizado na zona da mata alagoana, cujo nome se refere a uma frutinha de origem amazônica e de sabor agridoce, também conhecida como douradinha-falsa, mirici, muricizinho, orelha-de-burro, orelha-de-veado, semaneira e murici-da-mata. Vamos encontrar Maria Madalena da Silva, mais conhecida como dona Nena, assentada e produtora de farinha de mandioca. “Nasci em Murici”, ela afirma com simplicidade e orgulho, como quem cultiva raízes tão firmes quanto a mandioca que planta
Nossa conversa aconteceu em uma tarde de segunda-feira, via Google Meet. Do outro lado da tela, atrás de dona Nena, um grande cartaz de Nossa Senhora das Dores nos dava boas-vindas silenciosas. A mesma santa que acompanha a farinha de mandioca que ela produz. Quando vai vender na feira, vai junto a imagem da santa, os nomes dela e do marido — como um selo de devoção e afeto.
No quintal de casa, batizado também de Nossa Senhora das Dores, está sua casa de farinha. É lá que o tempo corre no compasso da terra: tempo de plantar, de colher, de raspar, de secar… E é nesse ciclo que nasce uma farinha branca, de grãos finos e médios, feita sem nenhum aditivo. Só com saber, técnica, suor e mãos femininas. As amigas ajudam a descascar a mandioca, e dali pra frente é dona Nena e seu esposo que tomam conta de todo o processo.
Ele também sabe fazer farinha d’água — embora, como conta, nem todo mundo conheça. Já aconteceu de levá-la à feira e as pessoas dizerem que não conhecem. Mas isso não a desanima. A goma que sobra é entregue para um vizinho que faz tapioca.
Hoje, ela é a única no assentamento que ainda produz farinha. E o que brota de suas mãos é mais do que alimento: é resistência, é fé, é herança viva.
Em meio à conversa com dona Nena, perguntamos de que formas ela costuma usar a farinha que produz. A resposta veio na hora, sem hesitar: farofa, pirão, comer com feijão... E, como quem oferece o que tem de mais precioso, completou com um convite que atravessa telas e distâncias: “Vocês têm que vir pra fazer pra vocês!”
A fala simples carregava um mundo — e, logo em seguida, trouxe também uma memória da infância: o pé de moleque de mandioca, receita que sua mãe preparava com carinho. A massa era enrolada em folha de bananeira e levada ao forno para assar. Era tradição nos tempos de festa de São João, quando a casa se enchia de cheiro, gente e alegria. “Vocês precisam vir pra comer!”, repetiu, como quem sabe que certas delícias só se entendem de verdade com o gosto na boca.
Enquanto contava, dona Nena ia nos enchendo de imagens, de cheiros, de vontade. Sua fala era receita, era lembrança, era gesto de quem sabe que cozinhar também é contar história — e que a farinha, quando feita com tempo e cuidado, vira ponte entre gerações.
Na cozinha de dona Nena, a mandioca vira farofa, vira pirão, vira doce de festa. E cada prato carrega a luta, saberes e o tempero de uma vida inteira.
No Fogão: Cuscuz de farinha d’água
Ainda pouco conhecida, a farinha d’água é um verdadeiro tesouro da cultura alimentar brasileira. Produzida artesanalmente, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Para sua produção as raízes da mandioca passam por um processo de fermentação que confere sabor e aroma característico. A farinha d’água é um tipo de farinha que ao ser hidratada ganha uma textura úmida e solta, sem aglutinar e virar uma massa. Esse ingrediente cheio de história e sabor foi destaque em uma deliciosa e refrescante receita preparada na oficina Saberes e sabores das farinhas de mandioca, realizada no dia 12/06/2025 na cozinha didática da FSP/USP (Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo). Confira a receita e se inspire para preparar você também.
No porta-retrato: Oficina “Saberes e Sabores das Farinhas de Mandioca” na FSP/USP
No dia 12 de junho, o Laboratório e Cozinha Didática PTCAN (Procedimentos e Técnicas Culinárias Aplicadas à Nutrição) da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) foi palco de mais uma vivência do GT Alimentação Brasileira – Mandioca, a oficina Saberes e Sabores das Farinhas de Mandioca.
Entre cheiros, histórias e sabores, a mandioca nos conduziu por um Brasil profundo carregado de histórias, cultura, tradição e ancestralidade. Através das farinhas, pudemos experimentar não só texturas e receitas, mas também modos de vida e saberes que resistem e se reinventam a cada geração.
Tivemos a alegria de trabalhar com farinhas feitas pelas mãos de quem produz. Por exemplo, a farinha de raspa, conhecida por ser uma farinha que se assemelha à farinha de trigo, mas feita de mandioca, produzida pelas mãos da Evelym, uma das líderes do GT, que resultou em um bolo de laranja com castanha-de-caju de sabor surpreendente. Teve também a farinha do senhor Isaac vinda diretamente de Maragogi no Alagoas para a capital de São Paulo, que foi usada na receita do feijão tropeiro vegano.
Mais do que uma atividade culinária, essa oficina foi um disparador de memórias, curiosidades e novas ideias. Um convite à construção coletiva de saberes sobre a mandioca e suas múltiplas formas de existência — da roça ao prato, da tradição ao presente.
Nosso desejo é que encontros como esse ajudem a popularizar e valorizar a cultura alimentar brasileira, promovendo o reconhecimento e a salvaguarda da mandioca e de seus derivados, que sustentam tantas mesas e carregam consigo histórias, resistências e afetos.
Seguimos celebrando a mandioca, raiz que nos liga à terra, à cultura e uns aos outros. Pelo reencontro do Brasil com a mandioca!
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Em breve, publicaremos imagens desse dia tão especial em nossas redes. Acompanhe o instagram do Sustentarea (@sustentarea) para saber mais!
Você já pensou em quantas histórias, saberes e sabores cabem dentro de um pé de mandioca?
Estamos criando a Biblioteca Real, um espaço dedicado exclusivamente a livros que falam da mandioca — essa raiz ancestral que alimenta corpos, territórios e memórias há gerações.
🌿 E você está convidado(a) a fazer parte disso!
Se você tem livros, textos, publicações sobre a mandioca para indicar, manda pra gente no nosso formulário.
Esse conteúdo foi organizado e editado pelos integrantes do GT Alimentação Brasileira - Mandioca, Thais Takaji e Alice Medeiros, com contribuições de Jennifer Tanaka, Evelym Landim e Victor Pedroza.
Referências bibliográficas
ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza / Rumo a uma nova consciência. Capitán Swing Libros, 2021.