A mandioca, o capitão e a comida de mão [#24]
Cartinha da Rainha é uma publicação mensal do Sustentarea, núcleo de pesquisa e extensão da Universidade de São Paulo (USP).
O convite é que você se sinta em casa e navegue pelas diferentes seções desta cartinha.
Aqui um breve resumo do que você vai encontrar nesta Cartinha:
“Na varanda”, uma pesquisa sobre o capitão, tradicional bolinho de farinha e feijão;
“Sobre a Escrivaninha", destacamos os estudos de Raul Lody sobre comer com as mãos;
"No fogão”, uma receita de capitão incrementada;
"Na Janela”, apresentação de trabalho científico e eventos do Sustentarea
Na varanda: O capitão e a mandioca
O tríptico “Capitão”, de Larissa Souza. Crédito: Tamara dos Santos/Newsletter Prato Feito
“O capitão só existe por causa da mandioca.” É o que diz o pesquisador Mateus Habib. Jornalista carioca formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre pela Universidade de Coimbra, ele defendeu recentemente uma pesquisa em que parte do caso do tradicional bolinho de feijão com farinha de mandioca para explorar o ato de comer com as mãos.
Ele explica que tomou como mote as lembranças de sua experiência pessoal com a avó, com quem costumava degustar a iguaria, para analisar o prato a partir de uma perspectiva antropológica. O que a forma como comemos diz sobre quem somos? Quem come com as mãos no Brasil?
O texto ainda não foi publicado oficialmente, mas em conversa com a Cartinha da Rainha, o pesquisador adiantou alguns de seus achados.
O capitão é um bolinho feito com feijão, farinha de mandioca e temperos. Seus ingredientes são simples. Seu preparo não tem nada além de misturar tudo. E, na hora de comer, é o ideal é fazer com as mesmas mãos que uniram o caldo dos grãos à secura da farinha.
Segundo Habib, a mandioca entra neste contexto de três formas:
como pão, e sua função de pegar;
como amálgama da comida cotidiana;
como amálgama de identidades, centro de hierarquias e símbolo de resistência.
Para concluir a tese, Habib entrevistou 250 pessoas de todas as partes do Brasil. Desses questionários e de mais de 70 relatos, chegou à possível origem transmissora da receita, o interior da Bahia e de Minas Gerais. Também levantou uma questão chave para seus estudos: a dos corpos civilizados x os corpos grotescos. Apesar de palavras como afeto, orgulho e nostalgia permearem as histórias que recebeu, termos como vergonha e repulsa também apareceram, denotando uma dicotomia entre o bonito e o feio; o urbano e o rural; o rico e o pobre.
Em um texto que publicou em sua newsletter sobre o projeto, Habib diz: “Comer “de mão”, no Brasil, é prática de gente que se identifica com outros modos de vida. De gente que, como esta pesquisa concluiu, é de maioria negra, já que a história permanece e é inarredável, mas também branca, já que a mestiçagem quase conseguiu o que queria em matéria de aniquilação. Nordestina, mas também mineira, e mais próxima da ruralidade que da urbanidade. Quem come com as mãos não se separou completamente da natureza, ao menos não desse jeito radical, moderno-ocidental. E gosta disso, sabe sua importância, mesmo que não precise elaborar nada”.
Para saber mais sobre ele, vale checar a newsletter Prato Feito e seu perfil no Instagram.
Sobre a Escrivaninha: Estudos sobre o comer com as mãos
Crédito: Pexels
“O uso ancestral da mão nas escolhas e transformações dos ingredientes, além de cumprir etapas técnicas é um conjunto de rituais que atingem diferentes significados, sentidos e sentimentos.” A frase é do antropólogo, pesquisador e escritor Raul Lody, em um texto para a “Algomais, a Revista de Pernambuco”.
Lody tem uma série de pensatas sobre o “comer de mão”. “O que verdadeiramente importa é que a ação imediata se dá no caminho da comida à boca, direto, sem talheres, para atender um desejo físico, sensorial, quase sexual. Na infância que não comeu “capitão”, feito com bolo de feijão e farinha de mandioca, e ainda, um pouco de carne-seca desfiado ou mesmo uma rápida lembrança do toucinho, tudo amassado com a mão e alguns, ainda, eram culminados com uma batata frita, banquete que traz saliva à boca só de pensar”, escreve no mesmo texto, em que aborda preparações que dispensam o uso de utensílios como garfos, facas e colheres.
Para ele, há uma relação profunda entre o desejo pelo alimento e o próprio ato da alimentação. Em uma palestra online para a Casa Museu Ema Klabin, Lody explora a relação entre comida e sensações. “Os sabores são representados pela própria performance que realizamos sempre à mesa”, diz ele. Nesta passagem, o pensador se refere ao fato de que certos alimentos têm sabores positivamente intensificados pela forma como comemos, seja com as mãos ou com um conjunto de utensílios.
Para quem quer conhecer mais sobre o que diz Lody, recomendamos também “Farinha de Mandioca, o Sabor Brasileiro e as Receitas da Bahia” (ed. Senac), um dos mais de 70 livros que publicou sobre arte, gastronomia e patrimônio popular.
No Fogão: Capitão com molhinho de pimenta
Crédito: Reprodução/EPTV
O capitão é uma comida simples de fazer na sua essência. Misture feijão com farinha de mandioca e cebolinha ou coentro. Use os dedos para fazer bolinhos. Coma. É uma receita que não tem erro, resgata práticas ancestrais dos povos originários e ainda é uma delícia.
Mas encontramos uma receita incrementada do quitute para quem quiser tentar um jeito diferente: fritar os bolinhos e servi-los com um molho de pimenta. O preparo foi mostrado no programa “Terra da Gente”, da EPTV.
Capitão
Para o bolinho
Ingredientes
3 a 4 conchas de feijão já pronto e temperado
1 xícara de farinha de mandioca
Cebolinha a gosto
Modo de preparo
Aqueça o feijão e misture com a farinha de mandioca até dar o ponto. Acrescente a cebolinha e molde os bolinhos. Consuma imediatamente ou frite em óleo quente se preferir.
Para o molho de pimenta
Ingredientes
1 tomate picado
1/2 cebola picada
Azeite a gosto
Pimenta dedo-de-moça a gosto
Cheiro verde a gosto
Suco de 1 limão-cravo
Sal e pimenta-do-reino a gosto
Modo de preparo
Bata todos os ingredientes em um processador ou liquidificador e acrescente um pouco de água gelada.
Na janela: apresentação de trabalho científico e eventos do Sustentarea
Crédito: Thaís Martinez Arcari
Entre os dias 10 e 13 de setembro de 2024, o Sustentarea participou do 6º Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (ENPSSAN), na cidade do Rio de Janeiro, apresentado o estudo “Recomendações globais e realidades regionais: a mandioca na alimentação brasileira”, das autoras Thais Martínez Arcari, Jennifer Tanaka, Fernanda Gomes Teixeira Ferreira e Aline Martins de Carvalho. O objetivo do estudo foi avaliar o consumo de farinha de mandioca pelos brasileiros, segundo características sociodemográficas e econômicas e discutir esses resultados à luz das recomendações da dieta planetária proposta pela Comissão EAT-Lancet.
No dia 23 de outubro de 2024, será realizada na cidade de Mossoró (RN), a oficina culinária “Caldo da Caridade” - uma parceria entre Sustentarea e a UniCatólica do Rio Grande do Norte. O intuito da oficina, segundo o responsável Francisco Gerson Nogueira de Medeiros, docente da UniCatólica e membro do GT Alimentação Brasileira - Mandioca / Sustentarea, é fomentar a preservação do patrimônio alimentar, a sustentabilidade e a valorização da ancestralidade por meio da culinária.
Já em novembro de 2024, o GT Alimentação Brasileira - Mandioca / Sustentarea, promoverá a oficina culinária “Farinhas e afetos”, na Faculdade de Saúde Pública da USP. A ideia é apresentar os diferentes tipos de farinha de mandioca, seus usos e modos de produção, e sugestões de receitas. Em breve, divulgaremos informações sobre a data da oficina e as inscrições nas redes sociais do Sustentarea.
Para finalizar a agenda de eventos, o Sustentarea convida o público em geral a participar do curso presencial “Alimentação, sustentabilidade e crise climática: diálogos entre teoria e prática - ALSus”, que ocorrerá entre 3 e 7 de fevereiro de 2025, durante o 32º Programa de Verão, promovido pela da Faculdade de Saúde Pública da USP. Por meio de discussões teóricas e uma experiência prática, os participantes poderão refletir sobre os principais debates globais acerca dos sistemas alimentares contemporâneos, com ênfase em sustentabilidade, crise climática e particularidades do contexto brasileiro. Mais detalhes no link.
Referências:
HABIB, Mateus . Comer de mão e o caso do capitão: Corpos, identidades e resistências. Prato Feito, 2024. Disponível em: https://substack.com/@pratofeito/p-146571486. Acesso em: 10 set. 2024.
LODY, Raul. Além do garfo. Algo Mais a Revista de Pernambuco, 2022. Disponível em: https://algomais.com/alem-do-garfo-por-raul-lody/. Acesso em: 11 set. 2024.
LODY, Raul. Da mão ao garfo: os rituais da alimentação. YouTube Casa Museu Casa Klabin, 2022. Disponível em:
Acesso em: 11 set. 2024.
JANUZZI, Nicole. Aprenda a preparar 'capitão': bolinho de feijão com farinha de mandioca: 'Hora do Rancho' ensina também a versão frita do petisco e passo a passo de um molho de pimenta para acompanhar. Terra da Gente, 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/terra-da-gente/noticia/2022/07/16/aprenda-a-preparar-capitao-bolinho-de-feijao-com-farinha-de-mandioca.ghtml. Acesso em: 26 set. 2024.